A moderação do conteúdo digital é uma problemática desde o surgimento da internet, no entanto, a urgência em encontrar uma maneira eficiente de controlar as informações transmitidas digitalmente foi agravada no cenário mundial após a popularização das redes sociais. Desde então, websites criaram seus próprios “códigos de conduta” para controlar conteúdos ofensivos, discriminatórios e difamatórios. No entanto, a moderação dos Estados sobre o conteúdo digital ainda é controversa. Enquanto alguns países controlam rigidamente as informações que circulam pela internet, outros terceirizam essa responsabilidade para as próprias redes sociais. Diante disso, a sociedade internacional vem questionando qual é o limite da proteção da liberdade de expressão e se a interferência das autoridades nacionais na moderação do conteúdo digital é legítima. Cabe, então, aos Sistemas de Proteção dos Direitos Humanos, em particular aos comitês especializados das Nações Unidas como o Escritório da Relatoria Especial para a Promoção e Proteção da Liberdade de Opinião e Expressão, orientar as autoridades públicas sobre como regular a liberdade de expressão na internet sem exceder os limites dos direitos humanos. Portanto, esta pesquisa busca analisar a eficácia das recomendações proferidas pelo sistema ONU relacionadas ao combate ao discurso de ódio e à moderação de conteúdo nas mídias sociais.
Sumário
Introdução
Durante os estágios iniciais do que hoje conhecemos como “a internet”, John Perry Barlow, um dos fundadores da Electronic Frontier Foundation (EFF), declarou que o ciberespaço deve ser “um mundo onde qualquer um, em qualquer lugar, pode expressar suas crenças, não importa quão singular, sem medo de ser coagido em silêncio ou conformidade”. No entanto, na realidade, observamos que a expressão livre de opiniões acarreta a propagação de ofensas discriminatórias e ódio, até mesmo com o objetivo de ofender a integridade física e mental de outrem. É por isso que a liberdade de expressão não é um direito absoluto, vez que encontra fronteiras no que diz respeito ao respeito aos direitos ou reputações dos outros, conforme previsto no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos Organização das Nações Unidas, em seu artigo 19(3).
Para proteger esse direito, os Estados devem se abster de qualquer tipo de ação que possa interferir na obtenção de opiniões, busca, recebimento e transmissão de informações e ideias de todos os tipos, através de qualquer forma de mídia. Ao mesmo tempo, os governos devem assegurar a participação igual e não discriminatória de todos os indivíduos na vida pública, considerando que qualquer discurso envolvendo ódio nacional, racial ou religioso e que constitua incitamento à discriminação, hostilidade ou violência devem ser proibidos por lei. Dessa forma, a concretização do dever estatal negativo de abstenção encontra, impreterivelmente, um grande desafio: o discurso de ódio.
De acordo com as Nações Unidas, o discurso de ódio pode ser definido como qualquer tipo de comunicação que ataca ou usa linguagem pejorativa ou discriminatória com referência a uma pessoa ou grupo com base em fatores de identidade, como religião, etnia, nacionalidade, raça, descendência, gênero, entre outros.
A proibição de comunicações odiosas pode ser interpretada tanto no ambiente offline quanto online. Contudo, é cada vez mais visível a conexão agravante entre a internet e a violência contra as minorias. No Mianmar, líderes militares e budistas nacionalistas utilizaram as mídias sociais para difamar a comunidade muçulmana Rohingya durante uma campanha de “limpeza ética”. Sobre este incidente, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos declarou que “o Facebook tem sido um instrumento útil para aqueles que procuram espalhar o ódio, em um contexto onde, para a maioria dos usuários, o Facebook é a internet”. Nos Estados Unidos, descobriu-se que um acusado de um ataque a uma sinagoga no estado de Pittsburgh era um usuário em um site de mídia social chamado Gab, popular entre grupos extremistas. No site, verificou-se que o perpetrador acreditava que o povo judeu estava tentando trazer imigrantes para os Estados Unidos e transformar a população branca em uma “minoria”. O acusado matou 11 judeus durante uma cerimônia de Shabat em 2018.
É neste cenário em que o papel desempenhado pelas mídias sociais e tecnologias digitais requer um quadro normativo regulatório, promovendo a supervisão transparente e responsável da moderação de conteúdo online. No entanto, a moderação direta dos estados nacionais sobre o conteúdo online ainda é bastante controversa. Enquanto alguns países interferem explicitamente na gestão dos conteúdos digitais, outros terceirizam a responsabilidade às redes sociais para determinar quais tipos de discursos devem ser protegidos e quais tipos devem ser reprimidos. A sociedade internacional, portanto, vem questionando qual é o limite da proteção da liberdade de expressão que legitima a interferência direta das autoridades nacionais na moderação do conteúdo das redes sociais privadas.
A China, por exemplo, aprovou uma lei que exige que todos os comentários em redes sociais sejam verificados antes que sejam publicados e os operadores que falharem em observar a regulamentação irão sofrer avisos, multas, exclusão dos comentários e até suspensão do serviço online.
Por outro lado, em países nos quais a moderação de conteúdo não é rígida, ficou à cargo dos próprios websites criarem “códigos de conduta” que visam moderar conteúdos e que variam suas previsões de acordo com cada plataforma. O Instagram, uma das maiores redes sociais atualmente, é uma empresa do grupo Facebook (Meta) e criou a chamada “Diretrizes da Comunidade” que regula usuários a fim de manter um “ambiente seguro e respeitoso”. Em relação ao discurso de ódio, o aplicativo proíbe qualquer tipo de discriminação ou bullying baseado em “raça, etnia, nacionalidade, religião, sexo, gênero, orientação sexual, idade ou deficiência”. Caso o usuário venha a violar as diretrizes, o Instagram pode tomar medidas como remoção do conteúdo – temporária ou permanentemente – ou até excluir a conta, além de medidas legais cabíveis. Na plataforma, qualquer um pode reportar uma violação, porém, depende do Instagram a revisão e definição do alinhamento do conteúdo publicado com as normas estabelecidas.
A comunidade internacional, portanto, vem questionando qual é o limite da proteção à liberdade de expressão que legitima a interferência de autoridades nacionais na moderação de conteúdo em redes sociais privadas. Nesse cenário, a Organização das Nações Unidas, em particular o Escritório da Relatoria Especial para a Promoção e Proteção da Liberdade de Expressão, tomou a iniciativa de guiar as autoridades públicas em relação à regulamentação do discurso livre sem exceder os limites dos direitos humanos.
A violação à liberdade de expressão é um dos exemplos mais claros de ameaças à segurança humana, no campo das questões políticas. A pressa em combater o discurso do ódio nas mídias sociais decorre do posicionamento do indivíduo como objeto referencial de segurança, considerando seu direito à não discriminação e à dignidade, bem como o perigoso poder que as palavras podem carregar, que pode levar à propagação de retorsões, represálias e até mesmo ao uso da força.
Diante dessa problemática, os atores internacionais devem ter como objetivo abordar o desenvolvimento de soluções para desafios globais a partir de uma perspectiva operacional, na qual desafios complexos são resolvidos com uma abordagem centrada nas pessoas, específica do contexto e orientada para a prevenção. Este quadro multidimensional de segurança humana é refletido no trabalho dos Relatores Especiais que atuam com recomendações temáticas e específicas de cada país, sendo, nas palavras do Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, “o mecanismo mais diretamente acessível da maquinaria internacional de direitos humanos”.
Esta pesquisa busca, portanto, analisar o trabalho e a efetividade dos esforços da mencionada Relatoria, no período de 2016 a 2023, relacionados ao combate ao discurso de ódio e à moderação de conteúdo nas mídias sociais, visando proteger o direito fundamental à liberdade de expressão e respeitar suas limitações.
A Relatoria Especial para a Promoção e Proteção da Liberdade de Expressão e Opinião das Nações Unidas
Origem e funções da Relatoria Especial para Promoção e Proteção da Liberdade de Expressão e Opinião das Nações Unidas
O sistema universal de proteção aos Direitos Humanos das Nações Unidas, representado pelo Conselho de Direitos Humanos, estabeleceu Relatorias Especiais que funcionam de forma independente e são encarregadas de vigiar, aconselhar, examinar e informar publicamente sobre uma questão temática (mandatos temáticos) ou sobre questões de direitos humanos em um determinado país (mandatos por países).
As Relatorias são configuradas baseadas em um grupo de especialistas independentes que monitoram, aconselham e publicamente reportam problemáticas relacionadas aos direitos civis, políticos, culturais, econômicos e sociais, entre outros. As funções de cada Relator variam desde endereçar respostas para aplicações individuais, organizar e conduzir estudos até aconselhar governos em relação à proteção de direitos humanos em situações específicas. A tarefa principal das Relatorias Especiais é, portanto, desempenhar uma função de supervisão, consulta, aconselhamento e acompanhamento através da elaboração de recomendações não vinculantes.
Mais especificamente, em 1993, o Comissariado de Direitos Humanos para as Nações Unidas criou a Relatoria Especial para Promoção e Proteção da Liberdade de Opinião e Expressão que atualmente é chefiada por Irene Khan, uma advogada reconhecida internacionalmente e ex-Secretária Geral da Anistia Internacional. O Escritório trabalha em Relatórios temáticos anuais, examinando os desafios enfrentados globalmente relacionados à proteção do discurso livre, disponibilizando diretrizes para os Estados-membros voltadas à solução de problemáticas. Ademais, o Relator é também responsável por publicar Relatórios direcionados a cada país, baseados nas visitas das Comissões aos Estados, aconselhando governos de uma maneira mais específica e contextualizada.
Dessa forma, as Relatorias atuam como um mecanismo especial dentro do quadro normativo das Nações Unidas através de uma natureza “quase-judicial” e os Relatores acabam por serem vistos como “enviados de direitos humanos”, sempre objetivando a proteção total dos direitos destinados a todos os seres humanos.
O Quadro Normativo para combate a discursos de ódio da Relatoria Especial para Promoção e Proteção da Liberdade de Expressão e Opinião das Nações Unidas
Em diversas declarações, o Escritório tem demonstrado preocupação em relação à liberdade de expressão no mundo online, chamando a atenção de Estados e de empresas de mídia social acerca da implementação de medidas para conter a disseminação do discurso de ódio.
Em 2019, durante a 74ª Sessão da Assembleia Geral da ONU, a Relatoria Especial publicou um dos seus Relatórios anuais, focando especialmente na regulação do chamado “hate speech” no direito internacional. A resolução visou destacar “obrigações chave dos Estados-parte e endereçar como a moderação de conteúdo pelas empresas pode garantir respeito pelos direitos humanos dos usuários e do público”.
Em 2020, o Escritório orientou o 13º Fórum das Nações Unidas sobre as Questões Minoritárias com foco no discurso de ódio online direcionado a minorias, discutindo os “desafios críticos de enfrentar o discurso de ódio, a retórica xenófoba e o incitamento ao ódio”. O fórum foi acompanhado por funcionários dos governos, da própria ONU, organizações intergovernamentais, nacionais e regionais e da sociedade civil.
A Relatoria também trabalha noticiando tópicos específicos, em sua maioria relacionados aos Estados, na seção do seu site nomeada “Comunicados à Imprensa”. Em junho de 2021, as notícias diziam respeito à violência contra a comunidade minoritária do Paquistão. Os especialistas em direitos humanos condenaram ataques online de extrema direita e de grupos israelitas. As ofensas foram publicadas em redes sociais, as quais foram usadas para propagar ódio que, segundo a Relatoria, “constitui incitamento à violência com impunidade para reunir pessoas a fim de trazerem suas armas e atacarem palestinos”. Na declaração, foi recomendado que o Governo de Israel condenasse tais incidentes.
Ademais, o Escritório abordou, em 2022, a questão da desinformação na era digital, relacionado a proteção à liberdade de expressão com o livre recebimento de informações durante conflitos armados. Para a Relatoria, a internet aumentou a manipulação de informações por parte dos Estados e grupos armados, o que levou ao agravamento da “disseminação e a velocidade da desinformação, da propaganda e do discurso de ódio, tendo como alvo os civis, grupos particularmente vulneráveis e marginalizados”. Nesse cenário, o Relatório focou em recomendar que os Estados assegurem que todas as medidas de combate à desinformação online e offline estejam alinhadas com os padrões internacionais de direitos humanos.
Em caso mais recente, a Relatoria Especial chamou a atenção para a disseminação de ódio racial na internet. O uso da palavra “N” em inglês, termo racista, na plataforma do X (Twitter) foi especificamente abordada visando destacar a necessidade de um nível mais profundo de responsabilização nas redes sociais sobre o discurso de ódio direcionado a pessoas de ascendência africana. Foi apontado que, embora algumas plataformas de mídia social afirmem não permitir o discurso de ódio, elas não são rigorosas nos compromissos das empresas com suas políticas internas, de forma a não responsabilizar os autores. Assim, ao mesmo tempo que a eficácia da moderação de conteúdo exigirá um compromisso contínuo das plataformas para revisar e modificar seus mecanismos, há também o risco de arbitrariedade e interesses de lucro atrapalharem a forma como as plataformas de mídia social monitoram e regulam a si mesmas.
O Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos divulgou uma carta aberta ao CEO do X (Twitter), Elon Musk, enfatizando que a liberdade de expressão não permite a disseminação de desinformação prejudicial que mina os direitos das descidas africanas e outros grupos, criando grandes fissuras nas sociedades. No final, a comissão convocou não apenas Musk, mas também Mark Zuckerberg, Sundar Pichai, Tim Cook e CEOs de outras plataformas de mídia social “para centralizar direitos humanos, justiça racial, responsabilidade, transparência, responsabilidade social corporativa e ética em seu modelo de negócios.”
As recomendações para Estados e atores privados da Relatoria Especial para Promoção e Proteção da Liberdade de Expressão e Opinião das Nações Unidas
A ferramenta mais poderosa com que os Relatórios Especiais podem trabalhar são os Relatórios, que são lançados a cada ano durante as sessões do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas. Os Relatórios transmitem o trabalho de campo e os estudos feitos sobre as diferentes questões relacionadas ao tema do Relator. Na área de liberdade de expressão, é possível ver um padrão de tópicos relacionados à moderação de conteúdo online.
O quadro internacional para a proteção dos direitos humanos é estabelecido em quase todos os Relatórios, no que diz respeito ao limiar das condições para limitar a liberdade de expressão, a fim de orientar o Estado sobre o caráter não absoluto do direito. Em primeiro lugar, toda restrição deve ser prevista por uma lei que tenha precisão suficiente para distinguir expressões legais e ilegais. Em segundo lugar, a restrição deve ser necessária e proporcional, de modo que a limitação imponha a menor carga para proteger os legítimos interesses do Estado. E, por fim, a restrição deve visar um dos interesses enumerados no Art. 19(3) do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos – (i) direitos ou reputação de terceiros; (ii) segurança nacional ou ordem pública; e (iii) saúde pública ou moral.
Em 2016, ano marcante em relação ao agravamento das fake news em todo o mundo, o Relatório temático esteve relacionado à interseção da regulação estatal, do setor privado e da liberdade de expressão na era digital. Nesse documento, o Escritório destacou o impacto do setor privado no acesso à informação, buscando identificar as categorias de empresas que são atores no campo e fornecer orientações sobre como devem proteger e promover a liberdade de expressão na era digital.
Em 2017, o Relatório tratou de como as ferramentas de criptografia e anonimato poderiam fornecer a proteção necessária para o exercício da liberdade de expressão, analisando o papel desempenhado pela tecnologia no acesso à internet e às telecomunicações. Para o ano de 2018, a Relatora se concentrou no ambiente on-line e no respeito às normas democráticas, aconselhando os Estados a buscar transparência, elaboração de regras, aplicação de regras e regulamentos para permitir que a autonomia dos usuários exerça direitos fundamentais no ciberespaço.
Em 2018, o Escritório propôs uma estrutura “para a moderação do conteúdo on-line gerado pelo usuário que tenha os direitos humanos no centro”. Neste Relatório, o Relator foi apoiado por observações apresentadas por 21 Estados, 29 intervenientes não estatais, uma empresa e por estudos de campo realizados no Vale do Silício, a fim de compreender as diferentes abordagens da moderação de conteúdo. O Relatório se concentra em aconselhar os Estados a apelarem apenas para a restrição de conteúdo de acordo com uma ordem judicial por uma autoridade independente e imparcial, de acordo com o devido processo e o limiar de uma limitação legal: legalidade, necessidade e legitimidade. Em relação às empresas, o conselho é melhorar a transparência e abrir-se à responsabilidade pública, a fim de desenvolver os mecanismos de responsabilidade da indústria digital.
O último Relatório diz respeito à liberdade de expressão versus desinformação online durante conflitos armados. Considerando o conflito Rússia-Ucrânia, o Relator observa que o espaço digital pode levar a uma manipulação da informação por atores estatais e não estatais, possibilitada pela tecnologia digital e pelas mídias sociais, alimentando discursos de ódio, incitando a violência e, principalmente, prolongando o conflito.
Especificamente em relação ao discurso de ódio, o Escritório divulgou um Relatório, em 2019, avaliando o quadro da proteção dos direitos humanos aplicável à regulamentação do ódio online. Em primeiro lugar, o Relatório destaca que a imprecisão e a falta de consentimento da comunidade internacional sobre o significado do discurso de ódio inibem os Estados e as empresas de realmente abordar as violações on-line “contra os vulneráveis ou contra o silenciamento dos marginalizados”. Para a Relatora, o discurso de ódio exige o cumprimento das exigências de uma sociedade democrática, que deve permitir um debate aberto, autonomia e desenvolvimento individual, mas também faz um esforço para evitar ataques discriminatórios, a fim de garantir a participação igual de todos os indivíduos na vida pública.
Conclusão
Considerando todo o exposto, analisa-se, portanto, a eficácia dos mecanismos da Relatoria Especial das Nações Unidas para a Liberdade de Expressão e Opinião na regulação de conteúdo online no combate à disseminação de mensagens de ódio nas mídias sociais.
A priori, é inquestionável que os Procedimentos Especiais desempenham um papel significativo na promoção e proteção dos direitos humanos em questões globais, mesmo em circunstâncias difíceis e problemas desafiadores. Como os Relatores Especiais são especialistas no campo do direito humano atribuído, as recomendações feitas nos Relatórios temáticos são altamente personalizadas, levando em conta a situação real de cada país. Assim, os Relatórios acabam por influenciar significativamente a elaboração, interpretação e implementação do marco do direito internacional e são capazes de aproximar o indivíduo do sistema das Nações Unidas.
Não obstante, a ausência de um quadro efetivo de acompanhamento dos Relatórios que são apresentados anualmente, ou mesmo as comunicações enviadas diretamente aos estados- membros são uma falha no Sistema Universal. Tal brecha foi, inclusive, reconhecida internamente pelo Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos:
Os mais de 100 Relatórios apresentados pelos Procedimentos Especiais à Comissão em sua sexagésima sessão, em 2004, incluíam Relatórios sobre o desenvolvimento dos direitos humanos em 39 países, elaborados com base em visitas realizadas por mandatário assistido pelo pessoal do ACNUDH. No mesmo ano, mais de 1.300 comunicações foram enviadas a 142 governos, abordando 4.448 casos individuais. Há muito pouco seguimento, no entanto, para esses Relatórios e comunicações, e o próprio Relator (que serve como voluntário, a tempo parcial) não está em posição de acompanhar, especialmente no que diz respeito a casos individuais.
Além disso, a eficácia das Relatorias também se demonstra falha no aspecto da vinculação e responsabilização dos Estados-membros que, diante da falta de medidas coercitivas, não se comprometem concretamente com as recomendações e, por vezes, não introduzem as normativas universais em seu ordenamento. É visível que os Estados-membros geralmente assumem compromissos meramente políticos para cumprir as diretrizes dadas sem estabelecer uma política eficaz para realizar as implementações.
Alguns governos, ainda, atuam de forma oposta aos Escritórios, através da imposição de restrições durante as visitas e pesquisas de campo, o que limita as possibilidades dos Relatores de compreender plenamente a realidade do país e dar recomendações diretas e úteis. Inclusive, há registros de um debate que teria ocorrido dentro do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, no qual os Estados teriam tentado abolir os procedimentos específicos do país, especialmente aqueles que visam proteger os direitos civis e políticos.
Em relação à eficácia no combate ao conteúdo de ódio nas mídias sociais, a Relatoria Especial tem historicamente direcionado esforços para solucionar essa urgente problemática, como demonstrado nesta pesquisa. No entanto, é fato que os Escritórios não têm uma visibilidade global e, consequentemente, não recebem os créditos por seus trabalhos. Por exemplo, é provável que muitos países e plataformas privadas online realmente levem as recomendações do Relator para suas legislações nacionais ou códigos de conduta, mas os Procedimentos Especiais não são mencionados como autores das diretrizes. Por outro lado, é possível observar um padrão nas políticas internas das mídias sociais que condiz com as recomendações apresentadas ao longo dos anos, que se baseiam em instrumentos jurídicos internacionais do Marco das Nações Unidas, como o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Por conseguinte, é impossível atestar a verdadeira eficácia do Procedimento Especial vez que os Estados-membros não vinculam especificamente a criação de suas legislações internas sobre o hate speech às normas internacionais proferidas pelo Sistema Universal e, da mesma forma, as plataformas privadas não creditam os Relatores em seus códigos de conduta internos que proíbem conteúdos odiosos.
Reconhece-se, também, que embora existam claramente desafios para que as Relatorias Especiais cumpram uma eficácia prática que o quadro poderia proporcionar, os vários Relatores trabalham diariamente com questões globais, nacionais e internacionais de direitos humanos, o que é essencial para a promoção da investigação e da definição de normas para o quadro de proteção. Assim, eles têm influência significativa na elaboração, interpretação e implementação da lei de direitos humanos e estabeleceram um mecanismo flexível que aproximou o trabalho das Nações Unidas dos indivíduos em todo o mundo.
Ressalta-se, portanto, a imprescindibilidade de melhorias nos mecanismos da Relatoria Especial para Promoção e Proteção da Liberdade de Expressão, objetivando alcançar sua máxima eficácia na orientação de autoridades públicas e privadas a fim de combater o discurso de ódio nas redes sociais. Em destaque, a necessidade de maior fiscalização e vinculação dos Estados-membros, além da autonomia do Procedimento em fazer um julgamento objetivo da situação do país sem a interferência do mesmo, e necessidade de envolvimento a nível nacional com os atores políticos nacionais e a sociedade civil. Por fim, entende-se que os motivos para a eficácia pouco expressiva dos Procedimentos compartilham da mesma origem das críticas ao soft-law, de modo que as Relatorias Especiais tendem a avançar junto com a iminente evolução do Direito Internacional.
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