Além da deflagração de uma guerra na Europa, cerca de três meses de invasão russa à Ucrânia já transformaram mais de 6,5 milhões de ucranianos em refugiados (UNHCR, 2022). À época da Guerra Civil Síria (2011-presente) e da chamada “Crise dos Refugiados” de 2015, o influxo que tentava cruzar o Mar Mediterrâneo em embarcações superlotadas era composto tanto por refugiados sírios, quanto pelos migrantes econômicos do Centro-Norte da África. Já nos Estados Unidos, a construção de um muro ao longo da fronteira com o México, bem como a separação de famílias imigrantes com o despejo das crianças em centros de detenção, retrataram a política de “tolerância zero” do então presidente Donald Trump (2017-2021).
A politização da questão migratória, isto é, a sua apropriação utilitarista pela agenda política, trata-se de uma prática comum, seja como propaganda eleitoral da extrema-direita populista europeia no auge da “Crise dos Refugiados”, como pilar do processo de livre circulação na Europa com o Acordo de Schengen, ou ainda como política de branqueamento do governo brasileiro após a abolição da escravidão em 1888. Isto pois a temática da migração é atemporal, vez que refere-se a um fenômeno inerente à história e desenvolvimento humanos, do qual, a despeito da repercussão da interação entre diferentes culturas —provocando conflitos, trocando experiências ou enriquecendo umas às outras—, “O ser humano povoou o planeta por meio das migrações, que remontam à própria história da humanidade.” (SARTORETTO, 2018, p. 29).
O FENÔMENO MIGRATÓRIO
Outrossim, o fenômeno da migração mostra-se marcadamente contextual, progressivamente complexo, multifacetado e que se automodifica, um “projeto sempre refeito”, dotado de um “dinamismo intrínseco que se reconfigura, transforma e reconstitui constantemente” (DURAND; LUSSI, 2015, p. 66). Desse modo, a análise de qualquer influxo migratório requer que as circunstâncias do espaço-tempo no qual se localize também sejam averiguadas para a sua devida compreensão, haja vista que, conforme ressalta Sartoretto (2018), “São muitos os motivos que levam as pessoas a deixarem o local onde nasceram ou residem em busca de uma vida digna em outro lugar.” (p. 29).
Tendo em vista que a migração se deve a uma “combinação de múltiplos fatores que podem ser sobrepostos ou atomizados” (OLIVEIRA; PEIXOTO; GÓIS, 2017, p. 76), o binômio atração-repulsão deriva desde circunstâncias geográficas (proximidade), geopolíticas (guerras, conflitos e secessão), linguísticas (afinidade), históricas (passado colonial e processos de integração), familiares (reunificação, descendência e retorno) e estruturais (desenvolvimento humano, padrão de vida e distribuição de renda), até em razão de diferentes políticas migratórias (critérios de oportunidade e conveniência) manejadas por cada país.
Na esfera analítica, o fenômeno migratório é verticalmente dimensionado em níveis micro, meso e macro, a exemplo do indivíduo, da comunidade e da nação, respectivamente; e horizontalmente multidisciplinar, vez que o estudo das migrações propicia o diálogo entre o Direito, as Relações Internacionais, a Economia, a História, a Sociologia, a Antropologia, a Demografia e até mesmo a Psicologia (DURAND; LUSSI, 2015). Sob a perspectiva jurídica, nota-se que enquanto os direitos de liberdade de circulação e de saída do país de origem encontram-se positivados internacionalmente nos termos do artigo 13 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, “Não existe nada como um ‘direito de entrar’ que possa ser equiparado ao direito de sair.” (REIS, 2004, p. 152).
Isso porque o ingresso em um país de destino constitui uma prerrogativa do Estado receptor, com vistas à soberania estatal no controle fronteiriço. Com efeito, se a instituição de fronteiras se refere a uma “construção humana”, pois decorre do reconhecimento mútuo entre Estados, a figura do “estrangeiro”, enquanto consequência direta da demarcação territorial que estabelece os limites entre o “dentro” e o “fora”, também pode ser considerada uma construção social (CARULLI, 2016). Na prática, do binômio migração-fronteira tem-se a interação recíproca entre o controle fronteiriço e os influxos migratórios, influenciando diretamente as condições quantitativas e qualitativas dos deslocamentos internacionais conforme as motivações do ato de migrar, os locais de partida, trânsito e chegada, e a condição de entrada no país de destino.
Isto posto, insta salientar a mudança de paradigmas decorrente da globalização ante a pulverização das fronteiras econômicas e telemáticas, mas também a sua contraditoriedade, frente à crescente limitação à circulação de pessoas no mundo: “Embora os fluxos globais de bens e finanças sejam apoiados e encorajados como parte de uma noção liberal de desenvolvimento, comércio e também segurança, o fluxo de pessoas está cada vez mais sendo abordado com uma variedade de políticas restritivas de gestão migratória que visam reduzi-lo.” (WOHLFELD, 2014, p. 63, tradução nossa). Ainda assim, a globalização, ao facilitar a mobilidade através das fronteiras, também viabilizou as migrações transnacionais, sendo portanto “inegável que as migrações globais representam uma das mais óbvias manifestações contemporâneas da globalização.” (SARAIVA, 2017, p. 44-45).
GLOBALIZAÇÃO DA MIGRAÇÃO
Todavia a “Globalização da Migração”, enquanto a inevitável fusão de ambos os fenômenos, provocou, em contrapartida, a fissão da sociedade internacional, pois a promoção de políticas migratórias seletivas e excludentes nos países de destino busca resistir ao produto inerente ao processo globalizatório, qual seja, o enfraquecimento do Estado e do seu poder de controle sobre as suas populações e instituições, contribuindo à “crise dos Estados nacionais soberanos” (HOBSBAWM, 2007). Não bastasse, tem-se ainda os subprodutos da Globalização da Migração, isto é, os discursos e práticas reacionários, como o racismo, a xenofobia e a islamofobia, apesar da sociedade internacional se pautar pela cooperação, solidariedade, paz e proteção dos direitos humanos em prol da sua coexistência e estabilidade.
Ademais, as desigualdades advindas do fenômeno globalizatório ultrapassaram a condição de mero efeito colateral, assumindo o caráter de substrato: é sobre os crescimentos desequilibrados e assimétricos decorrentes da própria globalização que esta se sustenta (HOBSBAWM, 2007). Desse modus operandi, tem-se uma incubadora natural de descontentamentos e instabilidades, de modo que, após a “Era dos Extremos” hobsbawmiana, inaugurou-se a “Era das Dicotomias”: Norte e Sul Globais, Ocidente e Oriente, nacionais e estrangeiros, “je suis Charlie” e “je ne suis pas Charlie”.
Isso porque a ambivalência tornou-se a norma do mundo globalizado, e se antes a mera “humanidade” constituía um mínimo denominador comum, atualmente tem-se uma crescente estratificação da cidadania arendtiana do “direito a ter direitos”: “Pois (…) a atual esfera da lei internacional (…) ainda funciona em termos de acordos e tratados recíprocos entre Estados soberanos; e, por enquanto, não existe uma esfera superior às nações.” (ARENDT, 2012, p. 406). De fato, em que pese a internacionalização do século XXI, é a soberania estatal que legitima a sociedade internacional, viabilizando a sua existência à medida que limita as dimensões do “inter”, “trans” ou “supra” pelo reforço do “nacional”.
No contexto da Globalização da Migração, tal conjuntura se reflete na documentação, pois o passaporte como documento de identidade internacional não apenas materializou a nacionalidade, como também personificou o direito e a liberdade de locomoção no cruzamento de fronteiras transnacionais. Com efeito, anualmente o Henley Passport Index (2021) elabora um ranking que classifica os passaportes dos 110 países listados do mais ao menos “poderoso”, “de acordo com o número de destinos que seus titulares podem acessar sem um visto prévio”. Em 2021, enquanto o passaporte japonês, considerado o mais poderoso, garantia o “livre acesso” a 193 países, os nacionais do último colocado, o Afeganistão —“uma das maiores e mais antigas populações refugiadas do mundo” (ONU News, 2020) —, somente conseguiam ingressar “livremente” em 26 países.
Tendo em vista que os dez primeiros colocados do ranking de 2021 eram apenas países do Norte Global, como Japão, Singapura, Coreia do Sul, Europa Ocidental, Austrália, Estados Unidos e Canadá, infere-se que (i) a variação anual do ranking decorre da constante interação da sociedade internacional com concessões recíprocas entre Estados, impactando diretamente na liberdade de circulação global dos cidadãos; e que (ii) o visto de entrada —enquanto autorização de competência exclusiva e soberana de cada Estado, conforme critérios e exigências discricionários, a depender do objetivo da viagem (Ministério das Relações Exteriores, 2022)— assumiu um caráter mandamental à mobilidade humana, como se a restrição documental de ingresso no país de destino fosse suficiente para impedir ou conter o influxo migratório, ao menos legalmente.
Isto pois “A exigência de autorização não significa que ninguém consiga cruzar a fronteira sem o consentimento do Estado. Não existe, nem nunca existiu, um Estado que tivesse fronteiras impermeáveis, ou absoluto controle sobre quem entra e sai do país.” (REIS, 2004, p. 161). É nesse cenário que surgiram as dicotomias do nacional-estrangeiro e do migrante legal-ilegal, reafirmando a estratificação da cidadania arendtiana em que o efetivo exercício de direitos legítimos depende, em última instância, da nacionalidade e condição jurídico-migratória do seu titular.
Com efeito, a referida problemática mostra-se alarmante haja vista que “As migrações forçadas são inerentes à história humana, e vão continuar a existir” (AZEVEDO, 2018, p. 04), sobretudo porque o número de migrantes irregulares tem crescido, como consequência direta das políticas migratórias restritivas que obstaculizam as oportunidades de migração regular (WOHLFELD, 2014). Diante disso, inaugurou-se a subcategoria do “crimigrante”, desumanizando o migrante “ilegal” como mero ilícito penal a ser controlado e eliminado ante a paulatina convergência entre a Lei Penal e a Lei de Imigração, fenômeno este que tende a agravar a vulnerabilidade inerente dos que vivem em situação de irregularidade (GUIA, 2012; STUMPF 2006).
Inclusive, tendo em vista que meras “escolhas terminológicas” nunca são neutras, mas dotadas de posicionamentos políticos (AGAMBEN, 2004; GUIA, 2012), postula-se a caducidade do termo “ilegal” em referência ao migrante, pois além de semanticamente incorreto —afinal, a contrariedade à lei refere-se à questão documental, e não à pessoa em si—, é carregado de juízos de valor ancorados em sensacionalismos e preconceitos que culminaram na estigmatização do migrante, e até mesmo dos refugiados —produtos de violações de direitos humanos e conflitos armados como na Síria, Líbia e Iraque—, no inconsciente coletivo (GUIA, 2012; WOHLFELD, 2014).
Ademais, a previsão de Žižek (2017) de que “haverá mais migrações, não apenas por causa de conflitos armados, mas também por causa de novos ‘Estados rebeldes’, crises econômicas, desastres naturais, mudanças climáticas, e assim por diante”, também mostra-se consonante à obstinação e necessidade humanas que permeiam a manutenção do fenômeno migratório, pois mesmo durante a pandemia de Covid-19 em 2020 —considerada a maior crise sanitária do século XXI—, o número de deslocados teve um aumento de 4% em relação a 2019 pelo nono ano seguido (ONU News, 2021). Nesse sentido, o filósofo esloveno prossegue que “em casos de tamanha turbulência, a soberania nacional terá que ser radicalmente redefinida e novos níveis de cooperação global inventados” (ŽIŽEK, 2017, tradução nossa), traduzindo-se como um ultimato às políticas migratórias nacionalistas, norteadas pela segurança estatal ao invés da segurança humana.
Não por acaso, Hobsbawm (2007) já afirmava que “a palavra ‘globalização’ sugere ‘medo e insegurança’ em vez de ‘oportunidade e inclusão’” (p. 111), de modo que a Globalização da Migração constitui um desafio irrefreável a esta e às próximas gerações. No cenário atual da Guerra na Ucrânia, constatou-se que, tratando-se de refugiados na Europa, ser ou não europeu é o fator determinante à respectiva recepção ou rejeição dessa espécie mais vulnerável do gênero migração, haja vista o devido acolhimento aos ucranianos em 2022, mas o descabido rechaço aos sírios em 2015.
Assim, se “as fronteiras transformaram-se no que poderíamos chamar de ‘membranas assimétricas’ que permitem a saída mas ‘protegem contra o ingresso indesejado de unidades provenientes do outro lado’” (BAUMAN, 2005, p. 87), além de uma política migratória humanizada, os Estados de destino também precisarão adaptá-la à universalidade dos influxos migratórios. Isto pois a migração trata-se de um fenômeno humano que, justamente em razão das suas assimetrias no contexto da globalização, requer o compromisso da sociedade internacional na proteção dos direitos humanos para a sua longeva sustentabilidade.
*Pós-graduanda Lato Sensu em Direito Internacional e Direitos Humanos pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Bacharela em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Pesquisadora nas áreas de Segurança Internacional e Migração.
REFERÊNCIAS
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